terça-feira, julho 7

Blasfêmia!

- Criado:
Fui testemunha, à noite passada, de certas coisas...

- Marquês:
Estava observando?
Sente-se.
Sente-se e coma, não se emburre como uma criança.
Lhe acreditava adulto.

- Criado:
Nem adulto nem nada.
Foi uma blasfêmia!
Foi um crime!

- Marquês:
A blasfêmia e o crime... lhe incomodam?
O que é você, criado?
Nisso teremos que mudá-lo.
Há Há Há Há Há!
Sente-se!
do que viu à noite, que nos comportávamos como seres livres, que desprezávamos a falsa moral em nome do prazer?
Por sermos imaginativos, por nos rebelarmos, por isso protesta?

- Criado:
Vai contra a natureza.
Contra Deus e a religião.

- Marquês:
Espere... vamos por partes.
O que nos dá a Natureza?
Não é voraz, destrutiva, cruel, traidora e totalmente insensível?
Por acaso matar e mutilar não é o que melhor se lhe dá?
Não vê que o mal é seu elemento natural, que emprega sua força criadora para encher o mundo de sangue, lágrimas e dor?

- Criado:
É nossa mãe.


- Marquês:
Que mãe dedica suas forças para causar desastres, a assassinar sem beneficiar a seus próprios filhos?
Olhe bem para essa sua "mãe" e a verá criar com a única finalidade de destruir.
Tudo o que faz é matar!
Ela nos obriga, a seus filhos, a nos comportarmos melhor?
Mataria uma mãe como essa?
Enquanto Deus...
A Natureza não depende de nossa vontade ou desejo.
Mas Deus é um engenheiro de temores e ansiedades humanas.
As pessoas sempre foram desgraçadas, sempre tiveram medo.
Busca-se a causa do sofrimento na esperança de que termine.
Inventa-se um Deus mítico para que cumpra seus desejos.
Deus não é mais que uma fantasia.
Nasceu de nosso medo.

- Criado:
Mas a religião nos ensina...

Marquês:
O que nos diz o dogma desse onipotente Deus?
O que pode dizer a sua religião dele?
Só o vejo como um ser bárbaro e vaidoso que um dia cria o mundo para lamentá-lo no dia seguinte.
Frágil criatura, incapaz de impor sua vontade aos homens!

- Criado:
Se Deus nos fizesse perfeitos, quem necessitaria da salvação?

- Marquês:
Que banal! Por que devemos ser dignos de nosso Deus?
Nos criar incapazes de fazer mal seria um ato digno de Deus.
Dar ao homem o livre arbítrio significa provocá-lo.
Em sua infinita sabedoria, Deus poderia vislumbrar o resultado.
Mas não, engana a sua criatura para divertir-se.
Que Deus mais terrível!
Que monstro!
Malvado Deus que não merece senão ódio e vingança!

- Criado:
Não teme a ira de Deus?
Seu castigo?
Deus nunca perdoará semelhante blasfêmia.
Não é você um monstro que viola inocentes indefensos...?

- Marquês:
Há Há! Há Há Há!
Inocentes indefensos!
Que piada insignificante! – Diz o marquês fingindo estar engasgado.

- Criado:
Lhe adverti...
Não deveria olhar.
Não deveria escutar.
Deus me perdoe por ter escutado tamanho sacrilégio.
Pai nosso que estais no céu,
bendito seja teu nome...



-Lunacy, Jan Svankmajer.

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